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Modo Narrativo

 

 

Os Maias  de  Eça de Queirós

 
Os Maias

 

 

 

Do punho de Eça de Queirós, numa escrita realista que apontava todos os "podres" da sociedade de finais do século XIX, surge Os Maias, onde o autor retrata a vida de três gerações de uma família de elevado estatuto nas lides lisboetas.

 

O incesto é um tema-chave do livro. Carlos, um jovem médico, envolve-se com uma misteriosa dama casada, Maria Eduarda. Ultrapassados vários obstáculos e pensando que finalmente poderia viver aquele amor tão "puro", Carlos da Maia vê o seu mundo ruir: o seu grande amor é afinal a sua pequena irmã afastada de si na tenra infância pela mãe, Maria Monforte, que fugiu do país, conduzindo o pai de ambos, Pedro da Maia, ao suicídio.

 

Eça de Queirós levou oito anos a compor esta saga familiar onde faz desfilar as suas personagens-tipo: mulheres fatais, políticos corruptos, jovens utópicos que assumem um papel de mudança no futuro do país, para, no fim, nada terem feito. O Portugal de Fim-de-Século é passado "a pente fino" pelo olhar atento, irónico e muito mordaz do nosso Eça.

 

 

 

 

As Personagens

 

Nesta obra queirosiana, intervêm cerca de sessenta personagens. Aqui apresentam-se as mais importantes e algumas personagens-tipo que assumem um papel relevante para o desenrolar da acção.

 

 

 

 

Afonso da Maia

 

Patriarca da família Maia, é um homem culto, requintado nos gostos e com firmes valores morais.

Na juventude, abraçara os ideais do Liberalismo, tendo ido viver para Inglaterra. Após o seu regresso ao país, casa-se com Maria Eduarda Runa, de quem tem um filho, Pedro da Maia. Ultrapassado o desgosto do suicídio do filho, dedica-se inteiramente à educação do neto, Carlos.

Passa o tempo em conversas com os amigos, lendo e opinando sobre a necessidade de renovação do país. Morre quando descobre os amores incestuosos dos netos.

 

 

Pedro da Maia

 

Fruto de uma educação retrógrada da mãe, apresenta-se mentalmente frágil, com um temperamento nervoso e fraco, tendo assiduamente crises de melancolia. Casa com Maria Monforte, de quem tem dois filhos. Suicida-se quando esta foge com um napolitano.

 

 

Carlos da Maia

 

Carlos é um belo e magnífico rapaz, culto, bem-educado e, tal como o avô, de gostos requintados. Fruto de uma educação "à inglesa", apresenta-se frontal e corajoso. Destaca-se na sua personalidade o cosmopolitismo, a sensualidade, o gosto pelo luxo e o diletantismo (incapacidade de se fixar num projecto sério e de o concretizar). Apaixona-se por uma misteriosa mulher, Maria Eduarda, com a qual vive uma intensa relação amorosa, vindo a descobrir mais tarde que é... a sua irmã!

Apesar da educação esmerada, Carlos fracassou na vida, devido a dois factores fundamentais: o meio onde se instalou (uma sociedade parasita, ociosa e fútil) e os aspectos hereditários (a fraqueza e cobardia do pai, o egoísmo, a futilidade e o espírito boémio da mãe).

 

 

Maria Eduarda

 

Alta, loira, bem feita, sensual mas delicada, Maria Eduarda é a mulher-mistério que surge na sociedade lisboeta e por quem Carlos se apaixona perdidamente. É-nos apresentada principalmente sob a perspectiva de Carlos de Maia para quem tudo o que viesse de Maria Eduarda era perfeito.

 

 

Maria Monforte

 

Costumavam chamar-lhe a negreira, porque o seu pai levara, noutros tempos, cargas de negros para o Brasil, Havana e Nova Orleães. Apaixonou-se por Pedro da Maia, com o qual casou e do qual teve dois filhos. Leviana e imoral, foge, mais tarde, com o napolitano Tancredo, levando consigo a filha, Maria Eduarda, a quem nunca revelou as verdadeiras origens. Morre na miséria, deixando um cofre a um conhecido português, o democrata Sr. Guimarães, com os documentos que identificam a sua filha.

 

 

Personagens-tipo

 

Jo da Ega

 

João da Ega usava "um vidro entalado no olho", tinha nariz "adunco, pescoço esganiçado, punhos tísicos, pernas de cegonha". Era o autêntico retrato de Eça e a sua projecção literária. É uma personagem contraditória: romântico e sentimental, mas, ao mesmo tempo, progressista e sarcástico face ao Portugal do seu tempo.

Amigo íntimo de Carlos desde os tempos de Coimbra, onde se formou em Direito (muito lentamente), vem viver para Lisboa após a conclusão dos estudos, deixando, em Celorico de Basto, a mãe e a irmã.

Boémio, excêntrico, exagerado, anarquista sem Deus e sem moral, sofre também de diletantismo, concebendo grandes projectos literários que nunca chega a concretizar. Como Carlos, também ele teve a sua grande paixão - Raquel Cohen.

Nos últimos capítulos, assume um papel de grande relevo, pois é a ele que o Sr. Guimarães entrega o cofre que desvendará toda a verdade.

 

 

Conde de Gouvarinho

 

Ministro e par do Reino, o Conde de Gouvarinho revela uma enorme falta de cultura e uma mentalidade muito retrógrada. Simboliza a incompetência do poder político.

 

 

Condessa de Gouvarinho

 

É imoral e sem escrúpulos. Trai o marido com Carlos, sem qualquer tipo de remorsos, mas acaba abandonada por este que se apercebe da sua imensa futilidade.

 

 

Dâmaso Salcede

 

Dâmaso representa o novo-riquismo, é uma súmula dos vícios da Lisboa da segunda metade do século XIX. É filho de um agiota e sobrinho do Sr. Guimarães. Caracteriza-se pela presunção, cobardia, mesquinhez e provincianismo, tendo como única preocupação o "chic a valer".

 

 

Sr. Guimarães

 

Tem um papel de relevo no desenrolar da intriga, pois é o mensageiro da trágica verdade que destruirá a felicidade de Carlos e Maria Eduarda.

 

 

Alencar

 

Amigo de Pedro da Maia, Alencar é o poeta do ultra-romantismo. Com esta personagem, Eça consegue construir discussões de escola, entre naturalistas e românticos, numa versão caricatural da Questão Coimbrã.

 

 

Cruges

 

Maestro e pianista patético, era amigo de Carlos e frequentador assíduo do Ramalhete. É desmotivado devido ao meio lisboeta - "Se eu fizesse uma boa ópera, quem é que ma representava?".

 

 

Craft

 

Inglês rico e boémio, coleccionador de "bric-a-brac", Craft representa a formação britânica, o protótipo do que deve ser um homem. É muito culto e de rígidos hábitos.

 

 

Eusebiozinho

 

Amigo de infância de Carlos, surge na obra, em oposição a este, como o símbolo da educação retrógrada portuguesa. Eusebiozinho, também conhecido por Silveirinha (era o primogénito de uma das Silveiras, senhoras ricas e beatas), cresceu tísico, molengão, tristonho e corrupto. Casou-se, mas enviuvou cedo. Procurava, para se distrair, bordéis ou aventureiras de ocasião pagas à hora.

 

 

 

 

 

Sabe Mais:

 

Obra Integral

Breve Análise

 

 

 

Duas cenas da obra ("Carlos vê Maria Eduarda pela primeira vez" e "O primeiro beijo")

 

 

 



 
 
 
A Aia (um conto de Eça de Queirós)
 
 
A Aia 
 
ERA uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.
A Lua-cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar - quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, traspassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio. A rainha chorou magnìficamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.
Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio, consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão!
Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas este era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de Verão. O mesmo seio os criava. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o prìncipezinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava também por amor dele o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Sòmente, o berço de um era magnífico e de marfim, entre brocados - e o berço do outro pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque se um era o seu filho - o outro seria o seu rei.
Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no Céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando num outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela um dia, por seu turno, remontaria num raio de luz a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus perfumes; seria no Céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.
Todavia, também ela tremia pelo seu prìncipezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanges da sua horda! Pobre prìncipezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava então nos braços. Mas se o seu filho chalrava ao lado - era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear da vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada do que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores - dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.
No entanto um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura - como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor.
Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu - o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, ràpidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga - e tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.
Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou - correu ao berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança, como se arranca uma bolsa de ouro, e abafando os gritos no manto, abalou furiosamente.
O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva.
Mas brados de alarme atroaram de repente o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho. Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes, num choro, despedaçada. então calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O príncipe lá estava, quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de ouro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.
E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão dos guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de archeiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas ai! dor sem nome! O corpozinho tenro do príncipe lá ficara também, envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado!... Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas - quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.
Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria extática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada, magnìficamente, a serva admirável que salvara o rei e o reino.
Mas como? Que bolsas de ouro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao tesouro real, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesouros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse...
A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como num sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros. Senhores, aias, homens de armas, seguiam num respeito tão comovido que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do Tesouro rodaram lentamente. E, quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem reis durante vinte séculos. Um longo ah, lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um silêncio, ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa, a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!... Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis, ia ela escolher?
A ama estendia a mão - e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:
- Salvei o meu príncipe, e agora - vou dar de mamar ao meu filho!
E cravou o punhal no coração.
 
 

 

 

 

Sabe Mais:
 
 
Análise do conto (autoria: Rita Agrela)
 
Actividades (autoria: Rita Agrela)
Ficha de Leitura do Conto
Sequências Narrativas
Jogo de Correspondências
Morfologia
Biografia do Autor
Bibliografia do Autor
 

 

 

 



 

 
 
 
 
O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

 

Jorge Amado

 

 

 

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

 
 
"Era uma vez antigamente, mas muito antigamente, nas profundezas do passado, quando os bichos falavam, os cachorros eram amarrados com linguiça, alfaiates casavam com princesas e as crianças chegavam no bico das cegonhas. (...) Aconteceu naquele então uma história de amor."
 
 
Quando o seu filho completou um ano de idade, em 1948, Jorge Amado escreveu-lhe esta belíssima história.
O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá não é um mero livro para crianças, é, acima de tudo, uma lição para todos nós.
Poderá um gato amar uma andorinha?
 
 
 
Lê o excerto (que, espero, te abra o apetite para a leitura integral da obra)
 
 O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá
 
 
 "Em torno era a Primavera, o sonho de um poeta. O Gato Malhado teve vontade de dizer algo semelhante à Andorinha Sinhá. Sentou-se no chão, alisou os bigodes, apenas perguntou:
- Tu não fugiste com os outros?
- Eu? Fugir? Não tenho medo de ti, os outros são todos uns covardes... Tu não me podes alcançar, não tens asas para voar, és um gatarrão ainda mais tolo do que feio. E olha lá que és feio...
- Feio, eu?
O Gato Malhado riu, riso espantoso de quem se havia desacostumado de rir, e desta vez até as árvores mais corajosas, como o Pau Brasil - um gigante - estremeceram. Ela o insultou e ele a vai matar, pensou o velho Cão Dinamarquês.
O Reverendo Papagaio - reverendo porque passara uns tempos no seminário onde aprendera a rezar e decorara frases em latim, o que lhe dava valiosa reputação de erudito - fechou os olhos para não testemunhar a tragédia. Por duas razões: por ser emotivo, não lhe agradando ver sangue, menos ainda de andorinha tão formosa, e por não desejar servir como testemunha se o crime chegasse à justiça, maçada sem tamanho, tendo de decidir entre dizer a verdade e arcar com as consequências da ira do Gato Malhado - processo por calúnia, umas bofetadas, o bico arrancado, quem sabe lá o quê - ou mentir e ficar com fama de covarde, de cúmplice do assassino. Situação difícil, o melhor era não testemunhar. Em troca rezou pela alma da Andorinha Sinhá, ficando em paz com a sua consciência, uma chata cheia de exigências.
A própria Andorinha Sinhá sentiu que exagerara e, por via das dúvidas, voou para um galho mais alto onde ficou bicando as penas num gesto de extrema faceirice. O Gato Malhado continuava a rir, apesar de se sentir um tanto ofendido. Não porque a Andorinha o houvesse tachado de mau e sim por tê-lo chamado de feio, e ele se achava lindo, uma beleza de gato. Elegante também.
- Tu me achas feio? De verdade?
- Feiíssimo... - reafirmou lá de longe a Andorinha.
- Não acredito. Só uma criatura cega poderia me achar feio.
- Feio e convencido!
A conversa não continuou porque os pais da Andorinha Sinhá, o amor pela filha superando o medo, chegaram voando, e a levaram consigo, ralhando com ela, pregando-lhe um sermão daqueles. Mas a Andorinha, enquanto a retiravam, ainda gritou para o Gato:
- Até logo, seu feio...
Foi assim com esse diálogo um pouco idiota, que começou toda a história do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá."
Jorge Amado, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhã
 
 
 
 
 

Sabe Mais:

 

Análise da Obra

 
 
 
 
 



 

 
 
 

Arroz do Céu
 
José Rodrigues Miguéis

 Arroz do Céu

 

 

Ao longo dos passeios de Nova York, por sobre as estações e galerias do subway, abrem-se grandes respiradouros gradeados por onde cai de tudo: o sol e a chuva, o luar e a neve, luvas, lunetas e botões, papelada. chewing gum, tacões de sapatos de mulheres que ficam entalados, e até dinheiro. Às vezes, lá no fundo, no lixo acumulado ou em poças de água estagnada, brilham moedas de níquel e mesmo de prata. Os garotos ajoelham de nariz colado às grades, tentando lobrigar tesouros na obscuridade donde sopra um hálito húmido e oleoso e o cheiro dos freios queimados. Fazem prodígios de habilidade e obstinação para pescar as moedas perdidas. Alguns têm êxito nisso, mas depois engalfinham-se em disputas tremendas sobre a posse e a partilha do tesouro: nunca se sabe quem foi que viu primeiro.

Outros, quando a colheita promete, chegam a arriscar nisso algum capital: juntam as posses, e entram dois, é quanto basta, no subway; uma vez lá dentro. trepam sub-repticiamente aos respiradouros, o que é uma difícil operação de acrobacia, para colher aquele dinheiro-de-ninguém, enquanto um ou mais camaradas vigilantes os vão guiando cá de fora. Também os há que entram sem pagar, por entre as pernas da freguesia e agachando-se por baixo dos torniquetes.

O limpa-vias trabalhava há muitos anos no subway, sempre de olhos no chão. Uma toupeira, um rato dos canos. Picava papéis na ponta de um pau com um prego, e metia-os no saco. Varria milhões de pontas de cigarros, na maioria quase intactos, de fumadores impacientes, raspava das plataformas o chewing gum odioso, limpava as latrinas, espalhava desinfectantes, ajudava a pôr graxa nas calhas, polvilhava as vias de um pó branco e misterioso, e todas as vezes que o camarada da lanterna soltava um apito estrídulo - lá vem o comboio! - ele encolhia-se contra a parede negra, onde escorriam águas de infiltração, na estreita passagem de serviço. Até já tinha ajudado a recolher pedaços de cadáveres, de gente que se atirava para debaixo dos trens, e a transportar os corpos exangues de velhos que de repente se lembravam de morrer de ataque cardíaco, nas horas de maior ajuntamento, uns e outros perturbando o horário e provocando a curiosidade casual e momentânea dos passageiros apressados. Sempre de olhos no chão, bisonho e calado, como quem nada espera do Alto, e não esperava. A vida dele vinha toda do chão imundo e viscoso. Nem sequer olhava a lívida claridade que resvala dos respiradouros para o negrume interior, onde tremeluzem lâmpadas eléctricas, entre as pilastras inumeráveis daquela floresta subterrânea metalizada: nunca lhos tinham mandado limpar. Eram provavelmente o domínio exclusivo de operários especializados, membros de outro sindicato, que ele não conhecia. Nem talvez soubesse que existiam os respiradouros. Era estrangeiro, imigrante, como tanta gente. não brincara nem vadiara na voragem empolgante das ruas da grande cidade, e vivia perfeitamente resignado à sua obscuridade. Devia aquele emprego a um camarada que era membro dum clube onde mandavam homens de peso, mas ele de política não entendia nada, nem fazia perguntas. Como tinha nascido na Lituânia, ou talvez na Estónia, só falava em monossílabos; e, debaixo da pátina oleosa e negra que o ar do subway nela imprimira com o tempo. a sua face era incolor e a raça indistinta. Antes disso tinha trabalhado em escavações, um «toupeira». Este emprego era muito melhor, embora também fosse subterrâneo. E não tinha que falar o inglês, que mal entendia.

Ora, à esquina de certa rua, no Uptown, há uma igreja, a de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, a todo o comprimento de cuja fachada barroca e cinzenta os respiradouros do subway formam uma longa plataforma de aço arrendado. Os casamentos são frequentes, ali, por ser chique a paróquia e imponente a igreja. O arroz chove às cabazadas em cima dos noivos, à saída da cerimónia, num grande estrago de alegria. Metade dele some-se logo pelas grelhas dos respiradouros, outra parte fica espalhada nas placas de cimento do passeio. Depois dos casamentos, o sacristão ou porteiro da igreja, de cigarro ao canto da boca, varre o arroz para dentro das grades, por comodidade. Provavelmente é irlandês, o arroz não lhe interessa, nem se ocupa de pombos: pombos é lá com os italianos, que, apesar de se dizerem católicos, são uma espécie de pagãos. O que se derramou no pavimento da rua, lá fica: é com os varredores municipais.

Volta e meia há casório, sobretudo no bom tempo, ou aos domingos. E um desperdício de arroz, não sei donde vem o costume: talvez seja um prenúncio votivo de abundância, ou um símbolo do «crescei e multiplicai-vos» (como arroz). A gente pára a olhar, e tem vontade de perguntar: «A como está hoje o arroz de primeira cá na freguesia?»

Aquela chuva de grãos atravessa as grades, resvala no plano inclinado do respiradouro, e, se mão adere à sujidade pegajosa ou ao chewing gum (o bairro é pouco dado a mastigar o chicle), ressalta para dentro do subterrâneo, numa estreita passagem de serviço vedada aos passageiros.

A primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu os bagos a estalar-lhe debaixo das botifarras, o limpa-vias não fez caso; varreu-os com o resto do lixo para dentro do saco cilíndrico, com um aro na boca. Mas como ia agora por ali com mais frequência, notou que a coisa se repetia. O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz de masmorra que escorria da parede. Mas o respiradouro, se bem me compreendem, obliquava como uma chaminé, e a grade, ela própria, ficava-lhe invisível do interior. Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as moedas, a poeira, a água da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros, sem entender. Desconhecia os ritos e as elegâncias. No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha.

Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a espiá-lo, abaixou-se, ajuntou os bagos com a mão, num montículo, e encheu com eles um bolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro: alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou-o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. Ela habituou-se, e às vezes dizia-lhe: «Vê lá se hoje há arroz, acabou-se-nos o que tínhamos em casa.» Confiada naquele remedeio de vida!

O limpa-vias nunca perguntou donde é que chovia tanto grão, sobretudo no bom tempo, pelo Verão, e aos domingos, que até parecia uma colheita regular. Embrulhava-o num jornal ou metia-o num cartucho, e assim o levava à família. Ignorando que lá em cima era a Igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, e como tal de bom-tom, não sabia a que atribuir o fenómeno. Pelo lado da raiz, no subway, os palácios, os casebres e os templos não se distinguem.

E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para encher a barriga aos filhos. Sem ele ter pedido nada. Guardou segredo - é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o objecto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu...

O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam.

in Gente da Terceira Classe, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1971, pp. 67-71 (1ª ed. 1962)

 

 

 

 

 

 

Actividades

 

Vocabulário (Jogo de Correspondências)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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